quarta-feira, 30 de julho de 2008

Cenário urbano


Nosso século é marcado pelo uso das cores e das várias possibilidades cromáticas. Tudo pode, misturar, ousar, contrastar ou assemelhar, seja na moda, na arquitetura, no design, nos cenários, seja onde for a cor parece ser o grito de liberdade sobre o “pretinho básico” e das novas possibilidades de tintas sintéticas, acrílicas e plásticas e de luzes como os leds. Mas esse grito de liberdade, as vezes, podem transformar esses espaços, principalmente nas áreas urbanas, em áreas de grande poluição visual com mensagens de todos os tipos e luzes cada vez mais coloridas, marcantes e ousadas.Las Vegas é um exemplo de cidade que faz esse uso exorbitante de luzes, cores e ornamentos que estrapolam os limites do bom senso e fazem dessa cidade um verdadeiro cenário urbano, que mais parece um parque de diversões. Cidade de grande exemplo também para o chamado "Galpão decorado" e "Pato" conceitos sobre arquitetura definidos por Robert Venturi em seu livro Aprendendo com Las Vegas: “quando os sistemas de espaço, estrutura e programa são distorcidos por uma forma simbólica global, chamamos essa classe de edifício que se converte em escultura de pato” (por exemplo, quando uma barraca de cachorro quente tem a própria forma de um cachorro! =/) O autor continua: “quando os sistemas de espaço e estrutura estão diretamente a serviço do programa, e o ornamento se aplica sobre estes com independência, chamamos a este tipo de galpão decorado”. E é nesse cénario urbano que alguns filmes foram gravados como Dimonds are Forever, Ocean's Eleven, Miss Congeniality 2, Looney Tunes Back in Action, aém das séries de televisão CSI e LAs Vegas.

Imagens das Ruas de Las Vegas

E que realidade urbana é essa que atrai tanto as pessoas?! onde os logotipos parecem ser os " Monumentos" do século XXI. E mais efeito que qualquer out-door, do que qualquer slogan,cores ou luzes podem causar na arquitetura que se vende por si só com suas estruturas "apelativas", o edifício aqui dispensa atravessadores, ele é o próprio desejo em dimensões tão inimagináveis quanto a possibilidade de sua realização para a maioria das pessoas. Então, que paguemos o pato!!!

notas:

1. Robert Venturi, Aprendendo com Las Vegas, 1978, p. 114.

2. Israel Pedrosa, Da Cor a cor inexistente, 2003.





domingo, 18 de maio de 2008

ESTÉTICA DAS FAVELAS - Paola Berenstein Jacques



Estética das favelas. A questão que se discute já não é mais, felizmente, relativa à remoção e relocação dos habitantes das favelas para áreas longínquas da cidade. Hoje, o direito à urbanização é um dado adquirido e incontestável, ou seja, a questão já não é mais simplesmente social e política mas deve passar obrigatoriamente por uma dimensão cultural e estética. Sempre houve um tabu, em se tocar nas questões culturais e principalmente estéticas das favelas, mesmo se sabendo, que o samba e o carnaval (e várias outras festas populares e religiosas), ícones da nossa cultura popular, se desenvolveram e possuem ligação direta com esses espaços, e que, ao mesmo tempo, várias favelas foram removidas por serem consideradas "antiestéticas". Em contrapartida, inúmeros artistas, tanto da própria favela quanto da dita cidade formal, ou até mesmo estrangeiros, se influenciaram e buscaram inspiração nessa "arquitetura" das favelas. Além de fazer parte do nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas se constituem através de um processo arquitetônico e urbanístico vernáculo singular, que não somente difere, ou é o próprio oposto, do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos, mas também compõe uma estética própria, uma estética das favelas, que é completamente diferente da estética da cidade dita formal e possui características peculiares. Do caso mais extremo onde a favela era removida e seus habitantes relocados em conjuntos habitacionais cartesianos modernistas, até o caso mais brando atual, onde os arquitetos da dita pós-modernidade passaram a intervir nas favelas existentes visando transformá-las em bairros, a lógica racional dos arquitetos e urbanistas ainda é prioritária e estes acabam por impor a sua própria estética que é quase sempre a da cidade dita formal. Ou seja, a favela deve se tornar um bairro formal para que uma melhor integração da favela ao resto da cidade se torne possível. Mas as favelas já não fazem parte da cidade há mais de um século? Será que essa integração formal é necessária? Esta não seria uma imposição autoritária de uma estética formalista visando uma uniformização do tecido urbano? Porque não se assume de uma vez a estética das favelas sem as pequenas imposições estéticas, arquitetônicas e urbanísticas, dos atuais projetos de urbanização que acabam provocando a destruição da arquitetura e do tecido urbano original da favela para criar espaços impessoais (que muitas vezes não são apropriados pela população local, ficando rapidamente deteriorados e abandonados)? Por que o "Pattern" (Padrão) bairro é sempre o exemplo a ser seguido em detrimento do inventivo e rico, tanto culturalmente quanto formalmente, "Pattern" favela? Porque não tentar seguir o "Pattern" Favela, tentando aprender com a sua complexidade e riqueza formal? Essa forma diferente de intervenção, inspirada nas favelas, poderia ser interessante para se atuar também na própria cidade formal (principalmente nos seus limites e fronteiras). (2)

Figuras conceituais. As figuras conceituais desenvolvidas a seguir são uma tentativa de se dissecar o que chamo de estética das favelas, ou seja, a estética desses espaços outros ou "outros espaços" – "heterotopias", cf. Foucault (3) – construídos e habitados pelo "outro" (não-arquiteto). A singularidade, ou melhor, a alteridade, desses espaços ditos "informais" ou "selvagens" era até pouco tempo completamente desprezada pelos arquitetos e urbanistas. As favelas possuem uma identidade espacial própria (mesmo sendo diferentes entre si) e ao mesmo tempo fazem parte da cidade como um todo, da sua paisagem urbana. Para se intervir nesse universo espaço-temporal, que é completamente diferente do resto da cidade, é imprescindível se compreender um pouco melhor essa diferença. Algumas características básicas do dispositivo espaço-temporal (mais do que o próprio espaço é a temporalidade que causa a diferença) das favelas podem ser exemplificadas por três figuras conceituais (não são somente formais/metáforas espaciais), em três escalas diferentes (aqui apresentadas de forma sintética e esquemática).

1. Fragmento (do corpo à arquitetura). Resultante da observação dos barracos, da forma fragmentária de se construir nas favelas, baseada na idéia de abrigo, que difere completamente da prática da arquitetura projetada por arquitetos. Os barracos das favelas são construídos inicialmente a partir de fragmentos de materiais heteróclitos encontrados por acaso pelo construtor. Assim, os barracos são fragmentados formalmente. O primeiro objetivo do construtor, que é quase sempre o próprio morador com a ajuda de amigos e dos vizinhos (princípio do mutirão), é de se abrigar ou de abrigar a sua família. Esse primeiro abrigo é quase sempre precário mas já forma a base para uma futura evolução. A partir do momento em que o morador encontra ou compra materiais adequados, ele substitui os antigos e começa a aumentar o barraco. Nunca existe um projeto preestabelecido para a construção de um barraco, os materiais encontrados formam a base da construção que vai depender do acaso e da necessidade de se achar novos materiais ou de se poder comprá-los. O barraco evolui constantemente, até chegar à casa em alvenaria, mas mesmo assim a construção não acaba nunca, as casas estão constantemente em obras. Mesmo menos fragmentadas formalmente do que os barracos de madeira, as novas casas em alvenaria são fragmentárias pois se transformam de uma forma contínua. A construção é cotidiana, continuamente inacabada. Uma arquitetura convencional, ou seja, uma arquitetura feita por arquitetos, tem um projeto, o projeto é feito antes da construção, e é o projeto que determina o seu fim, o ponto final para se acabar a construção. Quando não há um projeto não existe uma forma predeterminada para a construção, e assim ela não termina, permanecendo sempre inacabada. Ao invés de arquitetura, a prática construtiva das favelas ligada ao acaso e ao inacabado corresponde mais a uma "bricolagem" (4). Aquele que "bricola", ao contrário do arquiteto, não vai diretamente ao objetivo, nem busca uma unidade, ele age de forma fragmentária através das idas e vindas de uma atividade não planejada, empírica. A bricolagem seria uma arquitetura do acaso, uma arquitetura sem projeto. A forma final é resultado do próprio processo construtivo, o objetivo principal do construtor é criar um abrigo. Abrigar significa cobrir, revestir para proteger ou esconder. Ou seja, construir um interior para se entrar, construir um limite entre exterior e interior. Essa separação pode existir em vários níveis a partir do próprio corpo, primeiro há a roupa, depois o abrigo, a casa, o bairro, a cidade etc. A grande diferença entre o abrigar da bricolagem e o habitar da arquitetura é temporal, pois abrigar diz respeito ao que é temporário e provisório, e habitar, ao contrário, ao que é durável e permanente. É como a diferença entre o estar e o ser. O abrigo é temporário mesmo se ele durar para sempre e a habitação é durável mesmo se ela desabar amanhã. Mas o abrigo, mesmo não sendo concebido como tal, possui o potencial de vir a ser uma habitação, em cada abrigo há um devir-habitação imanente. A grande distinção entre a maneira de tratar o espaço dos construtores das favelas e dos arquitetos é quanto à temporalidade, pois entre o abrigar e o habitar existe um processo espaço-temporal completamente diferente. Como se os arquitetos espacializassem o tempo e os construtores das favelas temporalizassem o espaço. Essa oposição é clara quando se compara a forma de conceber o espaço dos arquitetos – que partem sempre de projetos, de projeções espaciais e formais para um futuro próximo – com a maneira de construir nas favelas – onde nunca há um projeto preestabelecido e que o contorno da forma da construção futura só aparece quando se começa realmente a construir e esta nunca é fixa e predefinida como em um projeto tradicional. A prática projetual implica também, na maioria dos casos, em uma racionalização da construção e uma simplificação do espaço por modelos ou modulações, ou seja, uma repetição do mesmo, o que não ocorre nas favelas onde por não existir a noção de projeto cada barraco é inevitavelmente diferente do outro.

2. Labirinto (da arquitetura ao urbano). Baseia-se no estudo do conjunto de barracos, do processo urbano labiríntico das favelas, compreendido através da noção de percurso e consequentemente da experiência do espaço urbano espontâneo, que é muito diferente do espaço desenhado por urbanistas. Ao se sair da escala de abrigo para aquela do conjunto de abrigos, do espaço deixado livre entre os barracos que forma as vielas e os becos das favelas, a figura do labirinto aparece quase que naturalmente ao "estrangeiro" que penetra os meandros da favela pela primeira vez. Além de formar realmente um labirinto formal, os caminhos internos da favela provocam a sensação labiríntica ao visitante principalmente pela falta de referências espaciais urbanas habituais, pelas perspectivas sempre fragmentárias que causam um estranhamento. Se perder faz parte da experiência espacial do labirinto-favela e para não se correr o risco é preciso ter um guia (morador), um fio de Ariadne. O "estrangeiro" mesmo sendo um arquiteto ou urbanista pode se perder facilmente diante da incerteza dos caminhos da favela (qualquer entrada pode ser um beco sem saída) pois ele não possuiu sua planta (que na maioria dos casos não existe). Aí está a grande diferença entre a favela e o labirinto mítico grego projetado por Dédalo, o arquiteto: a favela não possuiu uma planta prévia, ela não foi desenhada, projetada. O labirinto-favela é muito mais complexo, pois ele não é fixo, acabado, ele está sempre se transformando. Nenhuma planta de favela é definitiva, só podem existir plantas momentâneas, e sempre feitas a posteriori. A analogia com o mito pode ser levada ao extremo se pensarmos nas inevitáveis pipas sobre as favelas como homenagens a Ícaro (filho de Dédalo que morre fugindo do labirinto voando...). As pipas, segunda a lenda do morro, fazem sinais aos traficantes, que são considerados como Minotauros escondidos no labirinto-favela e são caçados pelos policiais, que se vêem como Teseu. Na favela-labirinto, o mito, como a própria favela, se refaz continuamente, jovens são sacrificados como os atenienses, e os moradores-Ariadnes continuam tecendo, sem a ajuda dos arquitetos-dédalos, essa grande construção coletiva não-planificada. O tecido urbano da favela é maleável e flexível, é o percurso que determina os caminhos. Ao contrário da planificação urbana tradicional que determina o traçado a priori, na favela as ruas (e todos os espaços públicos) são determinadas exclusivamente pelo uso. Uma diferença fundamental com a cidade planejada diz respeito à relação entre espaços públicos e privados, na favela esses espaços também estão inextricavelmente ligados. Durante o dia as ruelas se tornam a continuação das casas, espaços semi-privados, enquanto a maioria das casas com suas portas abertas se tornam também espaços semi-públicos. A idéia da favela como uma grande casa coletiva é freqüente entre os moradores. As ruelas e becos são quase sempre extremamente estreitos e intrincados o que aumenta a sensação labiríntica e provoca uma grande proximidade física que provoca todo tipo de mistura. Subir o morro é uma experiência de percepção espacial singular, a partir das primeiras quebradas se descobre um ritmo de andar diferente, uma ginga sensual, que o próprio percurso impõe. Deambulando pela favela se descobre como as crianças que nascem nesse espaço começam a sambar antes de andar direito, na verdade é muito raro se andar reto no morro – impossível de não se pensar na célebre máxima corbusiana do caminho dos homens e dos asnos: "O homem anda reto/.http://liquidificador.multiply.com/o asno em zig-zag/.http://liquidificador.multiply.com/". (5) E a analogia continua, pois o mito do labirinto também está ligado à dança. Teseu, após matar o Minotauro, comemora sua vitória dançando uma coreografia que imitava pelos movimentos do corpo a sinuosidade do labirinto de Creta. Sambar é a melhor representação da experiência labiríntica de se percorrer uma favela, que é o oposto mesmo da experiência urbana moderna, sobretudo das ruas das cidades projetadas racionalmente (o zig-zag dos passistas na avenida retilínea do Sambódromo demonstra bem isso). A grande diferença entre o labirinto improvisado e espontâneo que é a favela e as cidades projetadas por arquitetos e urbanistas, principalmente aquelas planificadas ex nihilo, é uma inversão da prática projetual e de planejamento urbano: enquanto nas cidades ou nos espaços urbanos completamente projetados, as plantas existem em projeto antes mesmo da cidade real, nos espaços labirínticos como as favelas, é o oposto que acontece, as plantas só são produzidas a posteriori, e são desenhadas a partir do espaço já existente (cartografias). A maior especificidade do espaço urbano da favela reside em seu tecido urbano labiríntico cheio de surpresas, que causa uma percepção espacial que é praticamente impossível de ser prevista, ou seja, de ser obtida através de um projeto urbanístico tradicional que automaticamente elimina o próprio mistério do percurso: particularidade fundamental de um labirinto.

3. Rizoma (do urbano ao território). Diz respeito à ocupação selvagem dos terrenos pelo conjunto de barracos, e sobretudo ao crescimento rizomático das favelas formando novos territórios urbanos, fundamentado pelo conceito de comunidade, independente de qualquer planejamento urbano ou territorial. Como a etimologia vegetal do termo favela (Jatropha phyllacantha) poderia indicar, as favelas são formações "orgânicas" que se constituem por ocupações "selvagens" de terrenos. A própria invasão de espaços vazios determina um ato de demarcação e de um conseqüente processo de territorialização. Os barracos aparecem no meio da cidade, entre seus bairros convencionais, exatamente como a erva que nasce no meio da rua, dos paralelepípedos ou mesmo do asfalto, criando enclaves, micro-territórios dentro de territórios mais vastos. A invasão de um terreno por abrigos forma um novo território urbano, uma cidadela dentro da cidade, que normalmente possui suas próprias leis. As favelas se desenvolvem como o mato que cresce naturalmente nos terrenos baldios da cidade, os barracos, como as ervas, aparecem discretamente pelas bordas e acabam ocupando todo o espaço livre rapidamente. Esse tipo de ocupação gera uma situação oposta ao que acontece nas cidades convencionais pois nas favelas, na maioria dos casos, a periferia dos terrenos ocupados, é mais valorizada e antiga do que o centro geográfico. As favelas são acêntricas, ou melhor, excêntricas. A periferia, a fronteira que separa a favela da cidade formal, passa a funcionar simbolicamente como um "centro", concentrando a maior parte dos comércios e serviços. Além disso, as favelas transbordam os terrenos que elas ocupam, sobretudo pelas relações diversas estabelecidas com o resto da cidade, principalmente as trocas culturais e coletivas, mas também, de uma maneira mais sutil, pelas relações individuais. Uma grande parte dos moradores das favelas trabalha no resto da cidade e às vezes como empregados domésticos, ou seja, dentro dos apartamentos tradicionais dos prédios nos bairros formais adjacentes. A territorialização se faz então através de três níveis diferentes: a própria ocupação do terreno baldio, a situação desses terrenos dentro da cidade, e as relações dos moradores das favelas entre si, através de uma forte idéia de comunidade, e destes com os habitantes da cidade "formal". Esses três níveis seguem o que pode ser chamado de "lógica da erva-rizoma" em oposição à "lógica da árvore-raiz" das cidades planejadas. Já é sabido, como diz Alexander, que "a cidade não é uma árvore" (6) como os urbanistas modernistas pretendiam ao projetar dentro de um sistema racional (estrutura em árvore) as suas cidades. Na crítica alexanderiana (pós-moderna), as cidades planejadas por arquitetos e urbanistas (ditas artificiais) seguem uma lógica da árvore, uma ordem simples e binária, e as cidades vernáculas e espontâneas (ditas naturais) seguem uma lógica da semi-treliça, que seria uma ordem mais complexa, múltipla. As favelas seguem uma "lógica" ainda mais complexa, pois elas estão constantemente em (trans)formação, nunca param de crescer (primeiro horizontal e depois verticalmente) e sobretudo, elas não são tão fixas como as cidades tradicionais, sejam estas planejadas ou não. Além da complexidade espacial das favelas deve-se contar também com a complexidade temporal. Existe uma diferença básica de enraizamento. A cidade projetada, cidade-árvore, é fortemente enraizada em um sitema-raiz, imagem da ordem; a cidade não-projetada (ou parcialmente), cidade-arbusto, funciona segundo um sistema-radícula não tão simples e ordenado; e a favela seria a cidade-erva, seguindo o sistema-rizoma (7) que é bem mais complexo. O gengibre é um rizoma, assim com a erva daninha. O sistema erva-rizoma é o oposto do da árvore-raiz (e do sistema arbusto-radícula que ainda conserva uma estrutura arborescente) pela sua multiplicidade, acentricidade (ou excentricidade) e instabilidade (em movimento constante). A maior diferença então entre a ocupação planejada e a ocupação selvagem das favelas, diz respeito ao tipo de raiz, uma fixa e a outra aberta, que possui um enorme potencial de transformação. Todo planejamento territorial imposto é baseado na demarcação fixa, ou seja, no interrompimento de movimentos preexistentes.

Favela: um espaço-movimento. As três figuras conceituais, sucintamente aqui expostas, são ligadas entre si pela idéia de movimento das favelas. a estética resultante desses espaços – fragmentados, labirínticos e rizomáticos – é, consequentemente, uma estética espacial do movimento, ou melhor, do espaço-movimento. O espaço-movimento não seria mais ligado somente ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, e ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço-movimento é diretamente ligado a seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constróem e os transformam continuamente. No caso das favelas, os dois atores, podem estar reunidos em um só, o morador, que também é o construtor do seu próprio espaço. A própria idéia do espaço-movimento impõe a noção de ação, ou melhor, de participação dos usuários. Ao contrário dos espaços quase estáticos e fixos (planejados, projetados e acabados), no espaço-movimento, o usuário passivo (espectador), se torna sempre ator (e/ou co-autor) e participante. Quando se deseja, no momento de urbanizar as favelas, preservar a sua identidade própria, a sua especificidade estética, é preciso se pensar em incentivar a noção de participação, e ao mesmo tempo, conservar os espaços-movimento. A idéia é paradoxal, como se conservar o que se move, se patrimonializar o movimento? Em relação às favelas, se existe algum tipo de intenção patrimonial (no sentindo de preservar a identidade cultural e estética desses espaços) no momento da urbanização, o importante a se preservar não deveria ser nem a sua arquitetura, os barracos, nem o seu urbanismo, as vielas, mas o próprio movimento das favelas, através de seus atores, os moradores. Os arquitetos e urbanistas no momento de urbanizar as favelas deveriam seguir os movimentos já começados pelos moradores, para ao invés de se fixar os espaços criando enfadonhos bairros formais ordinários, se possa conservar o movimento existente, ou seja, a própria vida das favelas (que é quase sempre muito mais intensa e comunitária do que nos bairros formais).Mas esses profissionais geralmente lutam exatamente contra esse movimento "natural", com a finalidade de se estabelecer uma pretensa "ordem". Mas porque não tentar gerir o movimento, orientá-lo segundo uma vontade estética e até funcional (sobretudo técnica), sem necessariamente de um projeto preestabelecido, convencional? O projeto convencional como já foi demonstrado, é a grande arma dos arquitetos e urbanistas contra o movimento "natural" das favelas, ou seja: contra o fragmento, o labirinto e o rizoma. O projeto, nesse caso, acaba com as potencialidades imanentes do já existente, fixa formas por antecipação, inibe ações imprevistas, e sobretudo, impede a participação real. Para se preservar o espaço-movimento deve se tentar agir sem um projeto convencional, atuando por micro-intervenções, ou seja, intervenções minimais que sigam o fluxo natural e espontâneo que já existe na favela. Isto significa respeitar as diferenças dessa arquitetura e urbanismo vernáculos e populares ao se conservar as suas características – fragmentárias, labirínticas e rizomáticas – seguindo a estética que já foi estabelecida pelos próprios moradores, ao invés de se tentar impor uma estética e uma lógica da arquitetura e urbanismo eruditos (que não foram nem pensados nem posteriormente adaptados para esse tipo de situação urbana). O arquiteto-urbanista que começaria a intervir nessas diferentes urbanidades já existentes, nessas novas situações urbanas já construídas com uma identidade própria, deveria ter um novo papel: este passaria a ser como um "maestro" que simplesmente rege os diferentes atores e gerencia os "fluxos" de movimento já existentes. E o mais importante, o arquiteto-urbanista passaria a fazer intervenções discretas, pouco visíveis, sem construir verdadeiras "obras arquitetônicas", sem colocar a sua "assinatura" formal de arquiteto, ou seja, o trabalho não teria uma "autoria" clara, passando a ser doravante coletivo e anônimo, como a própria favela. Para tal só seria necessário que os arquitetos-urbanistas deixassem de lado uma certa postura demiúrgica (no sentido platônico do termo) para que eles possam seguir mais modestamente o processo já iniciado pelos próprios moradores. É possível se "urbanizar" preservando a alteridade das favelas, através de uma metodologia de ação (intervenção mínima) ,sem projeto convencional, inspirada na própria estética da favela. E mais, essa outra forma de intervenção – fragmentária, labiríntica e rizomática – pode ser útil para se atuar na própria cidade dita formal, principalmente nos seus casos-limites (a favela é só um deles), ou seja, onde os métodos tradicionais da arquitetura e urbanismo já não funcionam mais há muito tempo.


Notas

1
Este texto foi parcialmente publicado em inglês: "The Aesthetics of the favela: the case of an extreme", in "Transforming cities, design in the favelas of Rio de Janeiro", Londres, AA Publications, 2001. O artigo foi publicado originalmente em português no Portal Vitruvius, Texto Especial Arquitextos, n. 078, junho 2001, <
www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp078.asp>.

2

O conceito de Pattern é utilizado conforme a acepção dada por Kevin Lynch, Good City Form, Cambridge Mass., MIT, 1981.

3
Cf MichelFoucault, "Des espaces autres" in AMC, outubro 1984.


3
Cf. Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962.


4
Cf. Le Corbusier, Urbanisme, Paris, éditions G. Grés et Cie, 1925.


5
Cf. Chistopher
Alexander, "A city is not a tree" in Architectural Forum, abril 1965.

6
cf. Gilles Deleuze/Felix Guattari, Mille Plateaux, Paris, éditions de Minuit, 1980.

Paola Berenstein Jacques é Arquiteta e Urbanista, Doutora em Historia da Arte pela Universite de Paris 1-Sorbonne, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Autora dos livros: Les favelas de Rio (Paris, l'Harmattan, 2001); Estetica da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001); Mare, vida na favela (et alli, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002); Esthetique des favelas (Paris, l'Harmattan, 2002) e organizadora de Apologia da Deriva (Rio de Janeiro, Casa da Palavra).

Fonte: Vitruvius (www.vitruvius.com.br).

TERRORISMO POÉTICO - Hakim Bey



DANÇAR BIZARRAMENTE A NOITE INTEIRA em caixas eletrônicos de bancos. Apresentações pirotécnicas não autorizadas. Land-art*, peças de argila que sugerem estranhos artefatos alienígenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos Poético-terroristas. Seqüestre alguém & o faça feliz. Escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil e impressionante fortuna - digamos, cinco mil quilômetros quadrados na Antártica, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia. Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência.

Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc.

Fique nu para simbolizar algo.

Organize uma greve na escola ou trabalho em protesto por eles não satisfazerem a sua necessidade de indolência & beleza espiritual.

A arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô & sóbrios monumentos públicos - a arte - TP também pode ser criada para lugares públicos: poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques & restaurantes, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas a destinatários previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal), transmissões de rádio pirata, cimento fresco...

A reação do público ou o choque-estético produzido pelo TP tem que ser uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror - profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta - não importa se o TP é dirigido a apenas uma pessoa ou várias pessoas, se é "assinado" ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou.

O TP é um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltronas, sem ingressos ou paredes. Para que funcione, o TP deve afastar-se de forma categórica de todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia). Mesmo as táticas de guerrilha Situacionista do teatro de rua talvez tenham agora se tornado muito conhecidas & previsíveis.

Uma requintada sedução levada adiante não apenas pela satisfação mútua, mas também como um ato consciente por uma vida deliberadamente mais bela - deve ser o TP definitivo. O Terrorista Poético comporta-se como um trapaceiro barato cuja meta não é dinheiro, mas MUDANÇA.

Não faça TP para outros artistas, faça-o para pessoas que não perceberão (pelo menos por alguns momentos) que o que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite a política, não fique por perto para discutir, não seja sentimental; seja impiedoso, corra riscos, vandalize apenas o que precisa ser desfigurado, faça algo que as crianças lembrarão pelo resto da vida — mas só seja espontâneo quando a Musa do TP o tenha possuído.

Fantasie-se. Deixe um nome falso. Seja lendário. O melhor TP é contra a lei, mas não seja pego. Arte como crime; crime como arte.

* Tipo de arte que usa a paisagem, normalmente natural, como objeto artístico, sendo a própria natureza (e seus fenômenos, chuva, vnto, etc.) elementos constitutivos da obra.

Tradução de Jersson de Oliveira

thaiSa deininger

ESTÉTICA PUBLICITÁRIA & LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA: UMA ANÁLISE IMAGÉTICA E PÓS-MODERNA DE CIDADE DE DEUS - por Layo Fernando Barros de Carvalho



ESTÉTICA

Em estudos fílmicos ou sobre teoria cinematográfica, correntemente são utilizadas terminologias que possuem empregos diferenciados dependendo do ponto de vista autoral. Estética, por exemplo, pode ser bem referida como uma teoria de interpretação pessoal e intuitiva ou também como uma análise de aspectos “palpáveis” e literais de uma obra.

Em se tratando de linguagem e estética publicitária (que mais uma vez, apresenta-se erroneamente; sendo mais bem representada como estilo ou poética), a teoria de Lévi-Strauss e seus pensamentos sobre estética podem clarear o conceito de como ela é percebida e analisada.

Lévi-Strauss não conceitua propriamente a estética, mas apresenta esta dentro da realidade artística. Como se ela se tratasse da marca da obra e do autor em contato com o mundo. Neste meio-tempo, através da percepção e da consciência estética, a obra seria julgada artística ou não. José Guilherme Merquior refaz os pensamentos do autor da seguinte maneira: “A estética da obra não repousa de nenhum modo sobre a idéia de intuição; deriva de bem outra noção de base: a de significação. (...) A estética da significação substitui assim naturalmente o controle do sujeito... a teoria lévi-straussiana da redução está centrada sobre uma analítica da obra...” (MERQUIOR, 1975, p.28)

Se analisarmos atualmente os estudos críticos dessa estetização publicitária, perceberemos muito mais uma idéia intuitiva de se analisar uma realidade imagética do que propriamente estética. A ênfase em uma intencionalidade do autor e nas conseqüências reais desta sobre a sociedade, como no caso da Cosmética da Fome em relação a Cidade de Deus. Uma interpretação, senão errada, equivocada ao tratar de estética de forma banalizada.

L.S. discursa sobre a individualização da produção exatamente para demonstrar o aparecimento de uma consciência crítica por parte do receptor que retira da estética-primitiva o seu dever social. A obra sendo produzida individualmente sem necessidade de bastar a uma sociedade ou clã. A estética-moderna depende apenas da aprovação ou não de uma clientela “de classe” (como utiliza o autor) para se firmar como arte.

Dentro deste aspecto surge a distância psíquica para a análise artística. Um afastamento fundamental do objeto que traria a consciência estética. Com a precaução de não cair no “uinderdistance” ou “overdistance” como descrevia o esteta inglês Edward Bullough (1912).

Ao mesmo tempo, com a evolução da crítica de arte e o aparecimento do abstracionismo, L.S. irá demonstrar um propósito antimodernista ao perceber a banalização presente na arte do pós-guerra. Além da hiper-valorização da crítica a representações pictóricas sem compromisso artístico.

Porém dentro desta mesma vertente podemos repassar seu conceito de arte, que funde a ciência e o mito na concepção do espírito humano (pensamento criador), em outro de seus pensamentos: a lógica do sensível. Lógica regida pela possibilidade de unir música e mito ou romance e mito através de uma “estrutura-função”. Todo meio artístico pode ser fundido a outro ou recriado, desde que o estruturalismo presente no espírito humano conceba um fim artístico.

José Guilherme Merquior, novamente, busca uma maneira de refletir e re-posicionar as concepções de Lévi-Strauss quanto à arte contemporânea: “Em vez de vociferar sobre a verdade ‘factual’ da ‘morte da arte’, conviria colocar a problemática implicada por essas teses em relação a uma das tendências mais fecundas do estruturalismo – sua vontade de ultrapassar as análises estanques dos domínios culturais (arte, religião, ciência, etc..), de encorajar a pesquisa de afinidades estruturais e funcionais entre esses ‘campos’, sem jamais esquecer que são todos faces de uma mesma realidade: o espírito humano” (MERQUIOR, 1975, p.79)

Em relação à estética publicitária, poderíamos refletir também sobre uma possível “morte” do cinema que ela estaria anunciando. Muitos críticos a profetizam tanto pela evolução de técnica que distancia o cinema cada vez mais de sua perspectiva fotográfica, assim como os recursos estilísticos que estariam se sobressaindo na concepção criadora do filme em contraposição ao realismo. A valorização da imagem em detrimento da representação.

Mas a concepção de retrato da realidade que o cinema carrega consigo, além de ultrapassada, está reformulada no posicionamento da sétima arte como uma visão moderna do homem diante da realidade (o espírito humano de Lévi-Strauss). Visão em que a câmera capta a imagem e não o objeto. Tanto a ontologia de Bazin como a teoria indiciática de Dubois já demonstravam essa evolução teórica da semiótica cinematográfica.

Da mesma forma, a estética publicitária não seria apenas um mero abstracionismo imagético do cinema. Seria a síntese de uma movimentação estética que atravessa todas as artes. A Pós-modernidade Cultural. Mais que um recurso estilístico, as imagens de Cidade de Deus, e de tantos outros filmes tachados como publicitários ou videoclipeiros, apresentam na verdade a representação do olhar do homem moderno. Um olhar a la Niemeyer. Fala-se de publicidade e videoclipe, quando toda a fundamentação está na fusão da linguagem videográfica com a fotográfica do cinema. Tenta-se reduzir o que ocorre à nossa volta em conceitos, quando ampliar a visão da rapidez das coisas para a confluência dos meios artísticos seria a melhor saída.

Em seu texto A Dupla Hélice, Raimond Bellour consegue ver logo no vídeo – base da estética publicitária – e na tecnologia digital o resumo desta realidade emergente: “O vídeo leva assim à sua perda essa capacidade de analogia dilatada às dimensões do universo: pela primeira vez, os corpos e os objetos do mundo são virtualmente desfiguráveis (e, logo, refiguráveis), ao sabor de uma potência que transforma, em tempo real ou quase não diferido (e não mais somente, como no cinema, por uma lenta elaboração cujas trucagens constituem o modelo), as representações que capta seu olho mecânico. Isso explica o fato de a vídeo-imagem, a caçula das imagens de reprodução, poder aparecer simultaneamente como uma nova imagem, irredutível ao que a precede; mas também uma imagem capaz de atrair , de absorver, de misturar todas as imagens anteriores, pintura, fotografia, cinema” (BELLOUR, Raimond in PARENTE, 1993, p.223).
Pós-modernidade cultural

A Pós-modernidade cultural é uma experiência contemporânea, a estamos vivendo e nos adaptando a ela, assim como ela se molda a nós. O cinema é uma das artes mais representativas desta constante evolução. A chamada estética publicitária agrega muito mais valores e condições do que a simplicidade da expressão proclama. O cinema pós-modernista é rico em variáveis e possibilidades. E o cinema que queremos analisar é uma das faces deste momento cultural.

Fredric Jameson deixa a entender em sua teoria que um dos fatores característicos do cinema modernista é a idéia de um autor original poderoso, que possuía um estilo próprio e único, que o distinguia e garantia a aura artística do seu cinema. O pós-modernismo não abole este estilo, pelo contrário, traz uma enxurrada deles, diz Jameson. Ou seja, é a legitimação de uma cultura de múltiplos estilos, que passam a ser combinados, permutados e regenerados, construindo novas linguagens e novas situações artísticas. Ele abre a possibilidade de várias formas diferentes, e não uma só totalizante. A hierarquia se transforma em heterarquia. O autor inglês Steven Connor define bem essa condição Pós-moderna: “Notável é precisamente o grau de consenso no discurso pós-moderno quanto ao fato de já não haver possibilidade de consenso, os anúncios peremptórios do desaparecimento da autoridade final e a promoção e recirculação de uma narrativa total e abrangente de uma condição cultural em que a totalidade já não pode ser pensada. Se a teoria pós-moderna insiste na irredutibilidade da diferença entre áreas distintas da prática cultural e crítica, é, por ironia, a linguagem conceitual da teoria pós-moderna que penetra nas trincheiras que ela própria cava entre incomensurabilidades – é essa linguagem que, nessas trincheiras, se torna sólida o bastante para suportar o peso de um aparato conceitual inteiramente novo de estudo comparativo” (CONNOR, 1989, p.17).

O fato de o cinema (assim como o vídeo) empregar técnicas de produção e reprodução tecnológica já contribuem para a superação de uma narrativa modernista, aquela narrativa de um artista individual que transforma um meio físico particular. A singularidade, a permanência e a transcendência do meio transformado pela subjetividade do artista cedem lugar, no cinema pós-moderno, à multiplicidade, à transitoriedade e ao anonimato.

Apesar da diferença de linguagem entre vídeo e cinema estes dois meios parecem cada vez mais conectados e influenciados um pelo outro. Quando falamos em estética publicitária então esta conexão fica mais evidente. Parece interessante então citar aqui uma breve explicação sobre o vídeo pós-moderno feita por E. Ann Kaplan em um livro em que ela analisa os videoclipes e a emissora americana MTV: “O que caracteriza o vídeo pós-moderno é a sua recusa em assumir uma posição clara diante de suas imagens, seu hábito de margear a linha da não-comunicação de um significado claro. Nos vídeos pós-modernos, ao contrário de em outros tipos específicos, cada elemento de um texto é penetrado por outros: a narrativa é penetrada pelo pastiche; a significação, por imagens que não se alinham numa cadeia coerente; o texto é achatado, criando-se com isso um efeito bidimensional e a recusa de uma posição clara para o espectador no âmbito do mundo fílmico” (KAPLAN, 1987, p.63)

A referida estética publicitária no cinema nasce, então, neste contexto. Só um momento cultural da diversidade e da multiplicidade traria a tona um cinema que funde a linguagem videográfica com a fotografia do cinema, o hoje com o ontem e o amanhã, utopia e distopia, alta e baixa cultura, comédia e tragédia. O cinema produzido a partir daí então problematiza a percepção, o sujeito e o pensamento, rompe com os modelos dominantes de representação, produzindo uma série de novas posturas estéticas mentais e técnicas.

O novo sempre causa um choque e é necessário um período de adaptação para que seu público incorpore aquele código à sua vida. No caso do cinema pós-modernista, da estética publicitária, essa necessidade não aparece com tanta urgência. Filmes como Amores Perros, Clube da Luta e Cidade de Deus são contemporâneos no sentido de acompanharem o ritmo da vida do seu espectador, o ritmo urbano. São compatíveis com o olhar do homem moderno, acostumado a acumular um número cada vez maior de informações, a um mundo cada vez mais globalizado, a um mundo cada vez mais urbano e multimídia. Pós-modernismo apresenta-se no movimento artístico que emerge das nuances deste homem, ou seja, o homem contemporâneo já está, de certa forma, preparado para ele. A modernidade nasce da crise da representação, já que com ela surge a questão da produção do novo, algo que não é cópia, escapa à representação do mundo e se libertou dos modelos disciplinares da verdade. Leva cada um de nós a se confrontar com problemas cuja solução não se acha mais nas lições a tirar das experiências anteriores. Mas isto não é obstáculo para o homem moderno. Este “novo” já se apresenta perceptível a ele. E isso se evidencia muito claramente no cinema, mais do que em alguns outros modos de manifestação da cultura. O filme é um meio socialmente difuso, e seus públicos são amplos e conhecem os seus códigos, linguagens, história. O espectador se adapta muito bem a ele, e muito disso se deve ao crescimento da TV e à tecnologia do vídeo.

O “novo” que o pós-modernismo cultural traz está totalmente ligado à nova relação que se estabeleceu entre a noção de arte, ciência e tecnologia. Esses domínios, antes sempre separados, agora se vêm envolvidos em processos de troca, combinação, fusão. Sobre as novas tecnologias: “Em todo caso, e em grande parte graças aos novos métodos de transmissão de imagens e à difusão massiva dos conhecimentos e informações, entramos, no presente, em uma era em que o pensamento técnico e o pensamento simbólico se encontram, em que o impacto das novas tecnologias provoca uma mutação decisiva na esfera cultural” (POPPER in PARENTE, 1993, p.213)

Portanto, a pós-modernidade cultural é a grande chave para esta análise. Um olhar abrangente e sem preconceitos dos novos rumos da linguagem cinematográfica.


ANÁLISE FILMICA

Estudar a imagem pós-moderna de filmes tachados como publicitários ou videoclipeiros pode ser uma tarefa complicada. Na maioria das vezes o discurso acaba se resumindo a falácia de imagens rápidas. O que na verdade retrata ainda mais a visão parcial daqueles que reduzem a evolução visual do cinema à esta estética de retórica vazia. É certo que muitos filmes apresentam apenas cenas simplistas de montagem veloz e podem até ser pejorativamente discriminados neste conceito. Mas, cada vez mais, o cinema se apossa dessa nova perspectiva do homem moderno que acompanha um mundo sempre um passo a frente na imagem e no ritmo das coisas.

O filme Cidade de Deus reúne a maioria dos elementos para se fazer uma análise da modernidade visual do cinema comercial atual. Além de seus recursos narrativos (roteiro), flashbacks, ironia e violência (temas caros ao cinema independente, precursor desta estética) e profissionais da área publicitária, Cidade de Deus possui um discurso imagético que poderia ser analisado dentro de um tripé: montagem, fotografia e direção, em que encontraríamos a linguagem videográfica e cinematográfica juntas.

Lévi-Strauss reafirmava a importância de se reduzir a um ponto de reflexão (a obra – aqui, a imagem de Cidade de Deus) para não se equivocar e desviar o olhar crítico para o autor ou para a realidade. Daí sairia a consciência estética : “Colocar a obra no centro da reflexão... corresponde intimamente às tendências mais fortes do desenvolvimento teórico atual” (MERQUIOR, 1975, p.26)

Mas por que essa necessidade tão excessiva de se excluir a estória contada e a realidade que a permeia ? Porque o centro de estudo da estética repousa na imagem. Além disso, no cinema esta ainda se apresenta na forma de linguagem, com suas características próprias e excludentes ao conteúdo que nela é abordado. O discurso imagético que foge à diegese e ao fílmico: “Mas no meio desta totalidade, há um núcleo mais específico ainda, e que, contrariamente aos outros elementos constitutivos do universo fílmico, não existe isoladamente em outras artes : o discurso imagético” (METZ, 1977, p.76)

O fílmico, assim como a diegese, se apresenta dentro do universo do filme enquanto narração e visualização desta. Emissão, Mediação e Recepção. Suas possibilidades só podem ser compreendidas se analisadas dentro de um contexto. O filme dentro do filme. “Pois o fílmico é diferente do filme : o fílmico está para o filme como o romanesco está para o romance – posso escrever romanescamente, sem nunca escrever um romance” (BARTHES, 1990, p.58)

Ao mesmo tempo em que o discurso imagético (o cinematográfico) pode ser percebido através de uma análise de cenas ou semiótica. A análise que será apresentada em seguida será uma fusão entre a análise sintagmática elaborada pro Jean-Claude Bernardet de São Paulo S.A. (de Sérgio Person) para o modelo de Christian Metz em A Significação no Cinema e o modelo de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété em seu Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Uma análise de sintagmas do filme (cenas picadas, sequências e paralelas) porém com uma preocupação com os recursos apresentados e a teoria e história do cinema.
Montagem

Uma proposta tradicional de montagem no cinema é, entre tantas outras, ordenar as cenas para facilitar a compreensão do que é narrado e a obtenção de recursos visuais (elipses, etc) para transpor as dificuldades narrativas do roteiro.

A escola russa, com Eisenstein, Koulechov, Pudovkin, Vertov entre outros, foi pioneira em teorizar a montagem enquanto uma técnica narrativa (organização soberana) essencialmente cinematográfica. Juntos a Griffith, que havia posto em prática a essência da montagem e da linguagem (focos e enquadramentos), eles formam a frente do cinema clássico.

O cinema do pós-guerra irá seguir a concepção de montagem tradicional, mas apresentando diversificações em sua evolução. O neo-realismo, por exemplo, irá buscar uma fidelidade entre roteiro e realidade o que será visto através de uma montagem simples e seqüencial, em que os conflitos e a estória se transcorrem naturalmente, sem nem mesmo abusar (ou utilizar) recursos estilísticos de montagem. Já a nouvelle vague, constituindo-se um movimento de vanguarda, apresentará uma montagem “quebrada” que busca desconstruir a narrativa através de inversões de tempo e quebras de ciclo narrativo.

O cinema representativo da pós-modernidade, em que se inclui Cidade de Deus, será uma fusão de tudo que já foi apresentado dentro de uma estética visual que tem como principal força motriz a noção de ritmo narrativo. Não apenas o ritmo da sequenciação das imagens, mas de cada cena propriamente dita. O cuidado em se montar as cenas dentro de uma estética visual que acaba por refletir o espectador moderno.

Albert Laffay já demonstrou em sua Logique du cinema que: “O espectador percebe imagens que foram visivelmente escolhidas (poderiam ter sido outras), que foram visivelmente ordenadas.” (LAFFAY, Albert in METZ, 1977, p.34)

O cinema tradicional encontrava na montagem o meio de tornar o roteiro inteligível para o espectador. O cinema comercial pós-moderno ultrapassou este patamar. Ele agora se utiliza da montagem como forma de reestruturar o material captado para trabalhar cada momento do roteiro à sua maneira. Então, aquele momento que na escrita não parecia tão importante, na sala de montagem pode se transformar na cena clássica de um filme. Para se tornar clássica, ela necessita ficar gravada na mente do espectador e isso é o que o montador irá fazer. Cada vez mais, o processo de criação de um filme passa a ser posterior ao momento de captação.

Em Cidade de Deus uma sequência que pode trazer à tona essa discussão é exatamente a imagem-marca do filme em que o narrador é mostrado no momento ápice do roteiro : tirar a foto da gangue. Esta cena é tanto o princípio da narração como o fim. Desde o primeiro momento, o espectador já possui em mente o que virá pela frente.

A câmera, no início, gira até levar a narrativa para o passado através de outra imagem do personagem que parece ser a mesma. O mesmo posicionamento da câmera e a fusão das imagens apresentam Buscapé, o narrador, enquanto criança em um campo de futebol (fig. 6). Inicia-se assim o discurso da montagem que logo é assimilado pelo espectador : o vai e vem das estórias que nada mais é que reflexo da montagem. Notando-se ainda que a mesma montagem apresenta-se de forma clássica nesta cena reapresentada no fim. O campo da gangue e o contracampo do menino , sequenciados em contraposição é um recurso definidor do pensamento griffithiano assim como de todo duelo dos bang-bangs clássicos.

Antes desta mesma cena, durante as primeiras imagens e letreiros, enquanto uma galinha corre desenfreadamente pela favela, uma faca é amolada. O som da mesma é elevado nos momentos em que ocorre o corte das imagens que opõem perseguidores e galinha. Em um ritmo cada vez mais rápido. Como se a própria faca cortasse o filme. Metáfora da própria obra que é resultado de uma montagem nervosa.

Outro recurso utilizado que demonstra a preocupação em fazer com que transpareça o pensamento criador por trás das imagens são os momentos em que Buscapé começa a descrever as pessoas e a situação através de sua câmera. Em um primeiro momento – anos 60 – como o personagem ainda é uma criança, a própria câmera fotografa (paralisa) os personagens que serão descritos na estória do Trio Ternura. Esta etapa termina na paralisação da imagem da bola sendo furada por um tiro da arma de Cabeleira durante o jogo. No segundo momento – anos 70 – Buscapé, usando uma máquina de baixa qualidade (que dá para se notar pela imagem granulada), fotografa seus amigos na praia. Sendo que a câmera cinematográfica paralisa da mesma forma fazendo o movimento de aproximação da pessoa como se estivesse captando a imagem da mesma. Metz já analisava a possibilidade de: “...injetar na ‘irrealidade’ da imagem a realidade do movimento e, assim, atualizar o imaginário a um grau nunca dantes alcançado” (METZ, 1977, p.28)

Também dentro do aspecto de vai e vêm da narrativa e da montagem, o filme apresenta uma estrutura de sintagmas que explicam a narração que é ironizada pelo próprio narrador que insiste em não apresentar alguns personagens com a sarcástica frase “Calma... aí é outra estória”. Podemos ver três sintagmas: o primeiro é A história da Boca dos Apês em que uma câmera foca um mesmo enquadramento do apartamento em que várias imagens de pessoas que dominaram a boca vão sendo passadas, fundindo-se umas às outras (recurso que também desperta o espectador para uma nova realidade imagética – a idéia de movimento com a ausência da movimentação da câmera); o segundo, logo depois, é um flashback rápido com cortes temporais grandes, que mostra estória da mudança de Dadinho para Zé Pequeno; o terceiro, mais à frente, apresenta uma breve descrição de como ocorre o tráfico dentro da favela, através dos aviõezinhos, soldados, etc.

Essa quebra temporal, como já foi dito anteriormente, é uma das características de certas obras da vanguarda francesa. Há vários outros momentos de recursos essencialmente cinematográficos usados em função dessa nova estética: a duplicação da tela em cenas como Zé Pequeno procurando Bené no baile funk ou o menino-informante fugindo da boca do Cenoura. Além da linguagem paralela: cena em que enquanto Buscapé briga no jornal por causa da publicação das fotos da gangue sem sua permissão, é apresentada paralelamente a cena de Zé Pequeno compra vários exemplares na banca.

Tanto duplicação da tela como linguagem paralela são concepções primordiais do cinema clássico. Abel Gance e Dizga Vertov são apenas dois exemplos de cineastas que utilizaram estes recursos. Mas então o que há de moderno no uso do cinema da estética publicitária? Exatamente o uso da montagem. Dentro da própria divisão da tela há uma continuidade de ritmo de narrativa que não estava presente no passado. No baile funk, os cortes trabalham com a música de fundo. Já na fuga do menino, temos uma câmera focada do alto e agitada que nos remete ao intertexto de fugas policiais e de matérias jornalísticas. A linguagem paralela, ao mesmo tempo, brinca com o universo narrado em que uma cena traz a reposta para a outra. O medo de Buscapé no jornal e a satisfação de Zé Pequeno na banca.

Jean Mitry apresentou a síntese mais precisa, dentre os teóricos, para as primeiras aparições destes processos de linguagem fílmica no cinema primitivo. Porém, Christian Metz resumiria em seu ensaio sobre a semiótica na sétima arte (1973) que apesar de toda história e aplicabilidade destes recursos, nada poderia ainda firmar o cinema como língua, senão como linguagem. Afinal, o cinema, “sêmia flexível, mal formada e sempre nascente”, não possui uma idéia de organização rígida para se constituir uma língua como afirmavam certos teóricos.

A montagem é a referência para a concepção da modernidade visual do mundo cinematográfico atual. As possibilidades de programas cada vez melhores para a finalização da montagem, assim como a digitalização, tornam a sêmia cinema de Metz ainda mais flexível possibilitando o surgimento de recursos que Mitry nem poderia prever.

O exercício de se montar um filme atualmente perpassa não apenas a intenção criadora do diretor, mas também a percepção da obra diante dos olhos do espectador. Ferramentas do AVID e outras tecnologias estão transformando a maneira de compor visualmente um filme. Talvez por isso, os filmes se tornam cada vez mais quebrados em suas narrativas. Na tentativa de se assimilar ao homem moderno, a montagem, em sua incessante corrida pela originalidade, acaba por fragmentar a imaginação criativa e reprodutiva. Dentro deste círculo de influências, a montagem da pós-modernidade subverteu seus valores e acabou por se transformar em uma técnica de desconstrução. “...o problema atual não é destruir a narrativa, mas sim confundi-la : a tarefa de hoje consistiria em dissociar a subversão da destruição” (BARTHES, 1990, p.58)

FOTOGRAFIA

A história da fotografia cinematográfica se confunde com a evolução da linguagem e dos modelos de cinema. Se em seu nascimento a sétima arte se preocupava em se estabelecer como uma linguagem através da formação de uma decupagem clássica, a fotografia era apenas o meio de se obter esta (posicionamento de câmera e o corte). Não havia grandes princípios de se trabalhar a imagem.

Talvez o Expressionismo alemão possa ser encarado como marco de uma nova percepção fotográfica do cinema. O jogo de luzes casado com enquadramentos estranhos, cenografia estilizada e a busca por uma criação de imagens diferentes e exóticas refletiam a necessidade de se interferir na realidade da imagem transposta para película. O Technicolor foi a maneira gritante do cinema americano tentar conquistar o espectador através de imagens artificiais e uma paleta de cores exageradas. Porém estes exercícios visuais possibilitaram uma inquietação por parte da técnica cinematográfica que passaria a buscar um aperfeiçoamento da maneira de se trabalhar a imagem em película, assim como, na hora de sua captação.

A estética pós-moderna no cinema é muitas vezes denominada como publicitária exatamente por trazer esse verniz de beleza e clareza que permeia alguns comerciais de TV . Na verdade, a publicidade apenas retrata o que é melhor para os olhos do público; afinal, seu objetivo é, na maioria das vezes, comunicar um produto em um ambiente agradável. Mas a estética pós-moderna vai além deste aspecto. A imagem dela está mais para as formas retas e claras da arquitetura do fim do século, assim como a ironia colorida da POP Art e a leveza do abstracionismo artístico. Não que estas características a definam como a única opção para um filme se apresentar como cinema contemporâneo; mas como ela representa toda esta movimentação na imagem cinematográfica.

As cenas filmadas na praia, principalmente a do encontro de Buscapé, Angélica e a turma da Caixa Alta, representam a ordem do cinema moderno de criar imagens apuradas que, utilizando mesmos enquadramentos e luz, ficam marcadas no imaginário do espectador. Ou mesmo cenas que apresentam certo hiper-realismo através de uma grande definição de imagem como a iluminação das cenas à noite (o Trio Ternura atacando o motel e depois os seus componentes se escondendo nas árvores da mata – cena da imagem altamente definida da gota caindo) e o super closeup na cena em que Buscapé enrola um baseado no banco de trás do carro do paulista que lhe dá carona. A cena de Zé Pequeno no candomblé apresenta-se totalmente diferente do restante. Filmada à base de inúmeras velas e com uma imagem desfocada, a cena quebra com as outras exatamente para transpor a irrealidade e o misticismo da seita, marcando mais uma vez o imaginário receptor. “Com a síntese das imagens, os modelos podem engendrar imagens. Com o tratamento das imagens, é possível tratar imagens já existentes para analisá-las, e extrair delas características operatórias” (QUEÁU, Philippe in PARENTE, 1993, p.94)

As palavras de Philippe Queáu retratam o aparecimento de novas tecnologias que acabam por redefinir as imagens em reais e sintéticas. Paralelamente podemos analisar a possibilidade do tratamento de imagens como uma ferramenta para se criar ou destruir a realidade da imagem da sétima arte. Ismail Xavier, apesar de analisando a montagem, reflete também o momento da captação das imagens como definidor da ilusão que será criada: “Para a eficiência de tal ilusionismo, é preciso que os truques aplicados aos fatos que se passam diante da câmera colaborem com a objetividade essencial do registro cinematográfico, compondo um mundo imaginário inserido num espaço à imagem do real” (XAVIER, 1984, p.71)

Estes truques podem, na verdade, possuir várias funções. Desde facilitar a visualização de uma imagem com um jogo de luz, como criar outra com o mesmo jogo. Da mesma forma, na pós-produção, os recursos serão utilizados dentro da perspectiva do criador. Em Cidade de Deus, a transferência do material para HD (High Definition, processo digital de Alta Definição) e depois a volta ao formato de cinema possibilitou que a fotografia fosse trabalhada para criar o discurso imagético do filme. Mas sobre a invenção técnica, E. Souriau já advertia que esta não poderia solucionar um problema de arte, senão coloca-lo. Por isso, muitas vezes assistimos a filmes que tentam se engendrar na imagem pós-moderna mas acabam caindo no ridículo cinematográfico: a pretensão de ser artístico. Até mesmo porque a Pós Modernidade não é um selo de qualidade para as obras no cinema, mas uma evolução histórica da representação cinematográfica da arte.

A fotografia utiliza-se destes elementos exatamente para criar uma identidade para o discurso fílmico. O filme não ocorre em função da fotografia, mas sim o contrário. Podemos dividir claramente a fotografia da infância como mais amarelada, assim como os planos são mais lentos e clássicos enquanto a da maturidade torna-se azulada e cinzenta dentro do contexto da guerra do tráfico (imagens aceleradas e montagem metralhadora, como apelidada pela crítica em Cannes).

O casamento desta fotografia e montagem pensadas previamente é que cria o universo imagético pós-moderno de Cidade de Deus perante o espectador (o universo real). Ora buscando um ilusionismo, ora o hiper-realismo, esta estética trabalha continuamente com o espectador. Isso une a imagem ao movimento, criando uma semiótica própria para a película. “As intervenções humanas, com as quais despontam alguns elementos de uma semiótica própria, só intervêm ao nível da conotação – sic – (iluminação, incidência angular, efeitos de fotógrafos)... No cinema, em contrapartida, toda uma semiologia da denotação é possível e necessária, pois um filme é feito com várias fotografias.” (MERQUIOR, 1975, p.26)


DIREÇÃO E LINGUAGEM VIDEOGRÁFICA

A maioria dos grandes comerciais de televisão são feitos em 35 mm, como no cinema, devido à qualidade de imagem, mas realizados e montados através de uma concepção videoeletrônica da televisão. Como sabemos enquanto a linguagem cinematográfica é compostas por 24 fotogramas por segundo, a linguagem videográfica é derivada da leitura das linhas de varredura e da junção dos pixels que compõem a imagem eletrônica. Da mesma forma, o fotograma apresenta uma relação de tamanho 3x5, enquanto a imagem videográfica mede 3x4.

Diretores de publicidade precisam conviver sempre com essa necessidade de utilizar um meio artístico (35mm) para desenvolver um trabalho massificado. Muitos até mesmo enveredam para a vídeo-arte como forma de mostrar a criatividade do veículo televisivo enquanto linguagem. Já outros se voltam para o cinema, levando a técnica videográfica, alterando as concepções tradicionais de filmagem cinematográficas. “A video-arte (...) representa a capacidade de manipulação da tecnologia pelo agente criador, a necessidade e angústia pelo domínio do novo” (ALMEIDA, 1988, p.87)

Dentro deste panorama, o cinema é influenciado por todos os lados. Seja por causa dos profissionais que volta e meia passam pela experiência videográfica, ou devido às novas tecnologias trazem uma fusão cada vez maior das duas linguagens.

Arlindo Machado em sua análise da quarta dimensão da imagem em Pré-cinemas e Pós-cinemas já propunha a definição pós-moderna das imagens videográficas não mais como geometria, mas como geologia devido à inscrição do tempo no espaço característica da captação da imagem através do vídeo. Essa mesma inscrição será cada vez mais visível no cinema através da influência da imagem pós-produzida.

Uma cena de Cidade de Deus que ficou marcada no trailler do filme e pode representar essa idéia é o momento em que a câmera dá vários giros em volta do narrador. O dispositivo cinematográfio não é capaz de captar a imagem de forma centrípeta sem que ocorra perda de qualidade. No filme, esta dificuldade é solucionada através de uma alteração na velocidade da imagem, durante a montagem digital, que não deixa transfigurar a falha como um erro. Mostrando que o cinema busca se inscrever também na imagem videográfica para conseguir o efeito de rapidez temporal de edição derivada do vídeo.

Essa aproximação do vídeo não será vista apenas na rapidez da montagem, mas também na constante alteração lógica da direção na hora de captar as imagens que a configura dentro de uma modernidade visual.

O uso de imagens pulverizadas e granuladas em certas passagens (vide a cena do candomblé) demonstra uma constante parceria de efeitos que traduzem o aspecto retratado. Da mesma forma que desperta o espectador do contexto normalizado. Arlindo Machado já constatara isto: “...os sistemas de baixa definição aguçam a imaginação e exigem maior grau de participação do público.” (MACHADO, 1995, p.61)

Existem outros aspectos que demonstram essa interferência videográfica no filme. Muitos enquadramentos são fechados e até cortam alguns participantes da cena. Mas nada de forma ingênua, senão para ressaltar algum sintagma. Na cena em que a mulher do Paraíba conversa sobre o uso da banana durante o ato sexual com uma lavadeira diante de um tanque, a câmera foca primeiramente na roupa ensaboada, depois nas mãos da lavadeira, enquanto escutamos a conversa, até abrir no plano da cena. Uma crescente que tenta se integrar a narrativa à realidade do ambiente retratado. Leví-Strauss refletia esse poder da câmera como analisa Merquior: “O pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada a ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade... A imagem do pintor é total, a do operador é composta de inúmeros fragmentos.” (MERQUIOR, 1975, p.26)

A direção de todo o filme é voltada para uma tentativa pós-moderna de criar fragmentos originais de cenas. Talvez por isso a relação publicitária de ver e rever as imagens de um comercial na produção. Mas com a oposição gritante dos 30 segundos comuns ao cinema publicitário para os 130 minutos do filme.

Vários momentos retratam claramente essa criação da câmera buscando a diferenciação da leitura clássica. Uma delas é a tentativa de sempre posicionar a câmera de modos que diversificam a imagem, gravando-a na em um universo original. Na cena em que o Trio Ternura assalta um caminhão de gás, a imagem é captada na carroceria do automóvel criando uma marca para a cena. Tanto que esta imagem foi bastante divulgada nas resenhas do filme ao redor do mundo.

Outros efeitos são dois modos de se filmar cenas de mortes. A primeira mostra Dadinho matando em um plongé que leva a sua ascensão no crime. Logo após, já com sua gangue, são apresentadas a morte de várias pessoas com a câmera focando do alto verticalmente. Sempre com o dispositivo em uma mesma posição e enquadramento.

O cinema de Cidade de Deus mescla a narratividade clássica através de planos comuns, com a câmera na mão e quebra temporal característico do cinema de vanguarda. Fundindo o que a análise estética do cinema busca, certas vezes, dividir: “Usam frequentemente o plano-sequência lá onde (sic) os partidários da montagem teriam desmembrado e reconstruído; recorrem ao que se chama, por falta de melhor expressão, a câmera na mão lá onde (sic) as sintaxes tradicionais distinguem o travelling para frente, para trás, a panorâmica horizontal, a vertical, etc” (MERQUIOR, 1975, p.26)

No filme, o momento em que Zé Pequeno chega com sua turma ao apartamento da boca de fumo em que se encontra Buscapé traz uma reformulação do uso da câmera na mão. A cena que antecede sua entrada nos remete ao mesmo recurso da faca no início do filme. Quando Zé Pequeno bate à porta, o som da batida aumenta e a câmera balança freneticamente filmando as janelas dos apartamentos. É a câmera na mão revisada pela pós-modernidade: a câmera na mão em função do ritmo narrativo.

A direção de Cidade de Deus é um tópico da possibilidade de um cinema moderno cada vez mais videográfico em que a imagem é manipulada e revisada antes de sua exibição. Antecedendo à captação, a direção já elabora um storyboard da imagem pós-moderna que o filme pode ter. Comunicando-se, assim, com o espectador atual que busca um cinema que retrate a ele mesmo e ao universo que o forma. Afinal, “...é no cinema moderno e na era do vídeo que o vínculo se estreita, explode e se acelera, com pontos de cruzamento de uma extrema violência – o vídeo que estende o cinema com risco de dissolvê-lo em uma generalidade que não possui número nem nome na classificação das artes” (BELLOUR, Raymond in PARENTE, 1993, p.222)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A ‘especificidade’ do cinema é a presença de uma linguagem que quer se tornar arte no seio de uma arte que, por sua vez, quer se tornar linguagem” (METZ, Christian, 1977, p. 76)

O que podemos afirmar sobre a estética no cinema contemporâneo e a pós-modernidade ao final deste estudo? Pouca coisa. A frase de Christian Metz ilustra exatamente essa problemática artística presente no cinema. Sendo uma arte particularmente nova (pouco mais de cem anos), sua (possibilidade de) linguagem ainda é nascente e ,exatamente por isso, o coloca mais como meio de expressão do que arte propriamente dita, segundo uma visão rasa de suas possibilidades.

Mesmo com toda a formulação de teorias sobre o cinema clássico de Griffith e Eiseinstein e a história da sétima arte, ainda é uma tarefa complicada definir o certo e o errado dentro do cinema. O que é essencialmente cinematográfico e o que não é. O que pode ser arte, obra prima ou comercial. Principalmente na atualidade imagética em que se encontra o cinema.

Esta análise do tripé fotografia, montagem e direção dentro de uma estética pós-moderna responde a essa dificuldade de se estagmentar e conceituar dentro do cinema. A pós-modernidade cultural é um movimento disforme sem data de início e previsão de término. O cinema, atualmente, quebra com sua unicidade fotográfica do 35mm aderindo-se à novidade digital. São todos aspectos de uma mesma evolução que reflete o homem criador, que por sua vez, em um trocadilho a Metz, reflete-se em suas obras.

O estudo da chamada estética publicitária é mais uma busca por uma consciência estética do que por uma definição de regras do cinema contemporâneo. Uma tentativa de olhar o outro lado de uma história que pode ser mal interpretada e renegada. Assim como o cinema de Cidade de Deus reinterpreta a linguagem espelhando o homem pós-moderno em seus fotogramas, este texto vasculha as características deste cinema vislumbrando as possibilidades artísticas de uma estética que caminha a paços largos para um futuro ainda incerto.





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